segunda-feira, março 03, 2008

o centésimo quarto miado

Caros leitores deste blogue, quero aqui demonstrar a minha solidariedade para com o grande amigo http://malveiro.blogspot.com/
Transcrevo aqui as suas palavras, portadoras de um testemunho que urge divulgar, a fim de se alertar as consciências individuais e sobretudo políticas... Quando é que se perceberá o poder de ser usado o melhor de nós próprios, para o bem - efectivo e profundo - de todos?
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Sou hemofílico, uma condição física que me coloca em risco acrescido permanente e que aprendi a relativizar de modo a viver uma existência não condicionada pela ameaça da doença.
Ontem de manhã tive uma hemorragia. O sabor férreo do sangue na boca começou de manhã, pelas 8horas, após o pequeno-almoço. Como estava a mais de 100 km de distância do Hospital Distrital de Faro e porque já sabia o que me esperava (este verbo é o verbo certo – esperar), tomei precauções e adiei o inevitável: bebidas geladas, gelo triturado, repouso e a esperança que os 20% de Factor VIII que a genética me concedeu fizesse o seu trabalho de coagulação. Não fez.
Pelas 17 horas, já farto de me sentir um Drácula de mim mesmo, fiz-me ao caminho, sozinho de carro, até ao Hospital Distrital de Faro. Durante a viagem, pela Via do Infante, telefonei para o Hospital e pedi para falar com a Hematologia, porque sei que geralmente nestas situações o especialista administra 1000 unidades de factor VIII: “ah, Hematologia não temos, só Serviço de Sangue. Vai ter que vir até às urgências.”… senti um arrepio, agradeci e desliguei o telefone.
Continuei a viagem temeroso do tormento antecipado.
No atendimento inicial, às 19 horas, tudo foi muito bem. Explicado ao funcionário do guiché a minha condição e estado, fui encaminhado para o atendimento de triagem dentro da Urgência.
E pronto, havia chegado ao purgatório.
A enfermeira da triagem, criatura inexpressiva perante a minha informação de que era hemofílico e sangrava desde das 8 horas da manhã, atribuiu-me uma fita amarela (Método de Triagem de Manchester – do menos grave para o mais grave: verde-amarelo-laranja-vermelho) e fui para uma sala denominada apropriadamente de “Sala de Espera”. Lá dentro as pessoas sofriam, o que é espectável num hospital. E sofriam com dores? Sim, também, mas não só. Desesperavam com a espera e a ausência de informações.
No final de tudo, às 00:15 minutos do dia seguinte, conclui que a espera desesperante, desde a cor verde até à cor laranja inclusive, não foi para todos eles inferior a 5 horas.
Assisti, entre o purgatório da sala e o inferno da Urgência própriamente dita, a algumas cenas verdadeiramente deploráveis e inaceitáveis. Os corredores estavam apinhados de macas com doentes, dezenas, quase todos idosos. Vários gritavam e choravam sem que lhes fosse dada qualquer atenção digna desse nome. O cheiro a fezes e urina era impressionante.
Da sala de (des)espera até à sala de atendimento havia apenas uma estreitíssima passagem por entre as macas amontoadas de doentes. São cerca de 50 ou 60 metros que percorri 8 vezes, ida e volta: às 20 horas, perplexo, quando fui atendido por um médico extenuado que estava de banco desde o dia anterior; depois, horrorizado, às 21horas quando me fizeram análises ao sangue entre macas e uma confusão de gente; novamente às 22:00 quando me administraram o Factor VIII; e às 00:15, quando finalmente me foi dada alta sem quaisquer outras recomendações.
A brutalidade das condições físicas do espaço e principalmente a desumanidade com que alguns dos funcionários se dirigem aos doentes merece este comentário: observei gritos de funcionários para com alguns doentes perante o olhar impávido dos médicos presentes, vi gestos de humilhação pública - entre outros, a prática da mudança das fraldas aos incontinentes à vista de toda a gente. Também assisti, como todos os utentes que passam pelo longo corredor por entre as macas até ao balcão de atendimento, ao banho sem condições de privacidade e reserva da intimidade, tudo desnudadamente feito entre discursos de contenção pseudo-técnicos que infantilizam os enfermos que se queixam, uns entre gritos lancinantes, outros entre queixumes ininterruptos. Um horror inaceitável.
Faz-me recordar, infelizmente, os meus tempos de estágio em Coimbra, quando numa visita do então Ministro da Saúde - não aquela ilustre personagem de má memória para os cidadãos com hemofilia e para as famílias dos hemofílicos contaminados com VIH – os doentes que estavam depositados como meros objectos nos corredores das urgências foram retirados pelos elevadores para os pisos superiores de modo a esvaziar o Serviço até passar sua Excelência e a comitiva de jornalistas que o acompanhavam, tudo para efeitos de propaganda. Ninguém me contou, eu assisti.
Ontem, tal como outrora, ninguém me relatou seja o que for, eu vi e sobrevivi à situação, não sem sair dela outra vez com desgosto profundo e memórias visuais do absoluto sofrimento e da miséria.

6 comentários:

Sandra disse...

Não posso deixar de comentar este teu texto. É que é realmente revoltante!! Tens toda a razão. Não compreendo como é possivel esta total falta de condições e de humanismo! No mês passado também tive de recorrer ás urgencias do hospital de Faro e disse para mim mesma que só lá voltava se estivesse "mesmo a morrer".

gato xara disse...

Olá Sandra, muito obrigado pela leitura e pela partilha da tua experiência... De facto é revoltante, lamento também a situação que me relataste. É um verdadeiro atentado à dignidade humana! Quando é que todos percebem que TODOS ganham com o Amor, o melhor da Humanidade, em todas as suas formas?

Sandra disse...

Muito bem dito! :) Não sei o que falta compreender. O meu gato é muito melhor atendido no veterinario do que eu no médico... é no mínimo imcompreensivel o desamor que se sente pelo ser humano.

Filipa Teles Carvalho disse...

Vivemos em plena Idade Média, só que mais calados e ordenados penhorados...

Anónimo disse...

Simplesmente revoltante. Vc é d Portugal? No Brasil não é nada diferente, os médicos não olham nos nossos olhos, só sabem prescrever exames e dar diagnóstico e medicamentos.. =/
Tantos anos na universidade são incapazes de mostrar que o amor é o dom supremo, e sem amor ninguem é nada.

gato xara disse...

Olá Hay. É triste partilharmos esse facto. Espero e desejo que o Homem deixa muito mais a consciência tomar conta de si - uma consciência inteligente, emocional e verdadeiramente compassiva.